OTELO - Última Semana


“As nossas viagens ainda são as de Ulisses, os nossos trabalhos ainda são os de Hércules” diz George Steiner afirmando que só o regresso às origens - aos clássicos e à sua força canónica, permite o novo e alimenta a nossa necessidade permanente de originalidade.
Com a produção de Otelo, de W. Shakespeare, a ACE/Teatro do Bolhão regressa a uma das suas linhas nucleares de programação: a revisitação dos textos e dos autores mais emblemáticos da dramaturgia universal. O ciclo que propomos não é, evidentemente, literário mas teatral; no entanto constrói-se a partir de clássicos, essas raras obras que permanecem no Tempo, que nunca são esgotáveis, que cada geração tem necessidade de re-olhar e de tentar a sua leitura sempre incompleta. Pois, ao contrário da obra vulgar, o clássico não se deixa domesticar pela descodificação. “ O clássico é a obra significativa que nos lê”, diz Steiner de novo.
Neste sentido uma encenação de Shakespeare constitui, provavelmente, o desafio de reinterpretação mais paradigmático que poderemos encontrar no universo teatral já que continuamos a procurar, há mais de quatrocentos anos, através de réplicas e releituras das suas obras, um conhecimento mais profundo de nós mesmos. Ficamos tentados a acreditar, como Acroyd, que “Shakespeare ainda é o limite até ao qual conseguimos ver”.

Com esta incursão nos textos clássicos a companhia perspectiva a realização dum núcleo de espectáculos referentes e ambiciosos não só pela sua complexidade estética e técnica ou dimensão concreta (já que a sua produção envolve elencos, equipas e recursos alargados, feito ingrato para as estruturas sub financiadas do Porto) mas também pela relevância do reencontro da companhia com Kuniaki Ida, o encenador responsável por este ciclo de espectáculos.
Trabalhando fundamentalmente em Tóquio e Milão, Kuniaki Ida afirmou-se profissionalmente, ao longo dos últimos 30 anos, como director de teatro e ópera sendo reconhecido pelo seu percurso artístico sincrético pautado pela multiplicidade de identidades e referências. Parceiro fundamental do projecto, Kuniaki Ida dirigiu duas produções emblemáticas da companhia: A Resistível Ascensão de Arturo Ui, de B. Brecht, espectáculo inaugural da ACE/ Teatro do Bolhão, em 2003, co-produzido pelo TNSJ e D.Juan, de Molière, em 2005, espectáculo que representou Portugal no Festival Internacional de Teatro de Lisboa (MITE06) no Teatro Nacional D. Maria II.
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Pela sua mão somos agora transportados para o universo trágico de Shakespeare, para o seu Otelo, espectáculo fortemente marcado pelo cosmopolitismo e pela contemporaneidade das suas linguagens artísticas. Enquadrado por uma magnífica arquitectura plástica/ cénica (onde, como sempre, se pressente a contaminação do seu trabalho como director de ópera) o espectáculo conjura esse genial jogo de equívocos engendrado por Shakespeare, a comédia/tragédia tão profundamente humana que ainda hoje nos abala. A fragilidade derradeira e a vulnerabilidade à dúvida e ao engano de Otelo, a abjecta e paciente teia de ilusões urdida por Iago no exercício de um mal injustificado são traduções do que é ser homem - hoje e sempre. Kuniaki Ida explora o inesgotável potencial teatral deste texto evidenciando a sua surpreendente pertinência e actualidade. Em Otelo tratam-se: o preconceito racial e religioso, a desconfiança face ao estrangeiro; as questões da realidade e da aparência - pensemos finalmente que será um actor a representar uma personagem como Iago que irá afirmar: “os homens deveriam ser somente o que parecem”.


28 de Novembro de 2009
ACE/ Teatro do Bolhão