VULCÃO
A HUMANIDADE CONSEGUE VIVER SEM VIOLÊNCIA?
A HUMANIDADE PODE SER FELIZ?
JOÃO GROSSO, ENCENADOR
Talvez a felicidade seja possível. Talvez dependa do modo como nos posicionamos no contexto em que vivemos, do modo como somos reconhecidos pelos outros e de como nos aceitamos e nos pensamos a nós próprios.
Mas quando a intervenção de terceiros se sobrepõe à nossa vontade, quando menosprezam os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem: o nosso carácter, como escreveu Richard Sennett, então passamos a ser oprimidos, a tristeza instala-se e a queda toma conta de nós.
Assim é com Valdete. Mulher de forte carácter que se submeteu anos a fio ao homem que veio a revelar-se progressivamente um psicopata: Samuel, o marido.
E enquanto o dono/marido sem hesitações, sem angústias, sem respeito pelos outros, com um ódio generalizado e uma raiva patológica, numa evolução clínica negativa linear, tem o objectivo funesto de exterminar os Diferentes, Valdete despersonaliza-se, complexifica-se, tem sentimentos de divisão — quer/não quer, gosta/não gosta, apoia-se na ideia de que o filho vive algures para suportar a violência do presente.
Para sobreviver terá a vítima que exterminar o exterminador?
Valdete não está bem ficando, mas também não consegue partir. Limitada ao comportamento padrão da vítima de relação violenta, a sua única possibilidade de salvação é destruir o objecto da violência assumindo, assim, o papel violento. Tornando-se, em alguma medida, numa exterminadora.
No espaço flutuante da complexa brancura da memória, agora ou a "um milhão de anos-luz", apoiada numa grelha de gestos e acções de uma quotidianidade banal, Valdete é uma sombra, vive como que fora da vida, como se não existisse. Porventura como as sombras de Mark Rothko: sem associação directa com nenhuma experiência visível particular, mas nela se reconhecendo o princípio e a paixão dos organismos.